Revista Diário - 16ª Edição - Junho 2016
E ram quase 21h, estava de plantão na en‐ fermaria de cuidados paliativos quando recebi a visita de um senhor bem vestido, de aproximados 70 anos e que, educadamente, perguntou se, ali, estava internada uma senhora chamada Martha Linda. Respondi que sim e que, apesar de estar fora do horário de visitas, ele poderia vê‐la. O senhor, então, pediu que eu explicasse o que tinha acontecido a ela. Dona Martha Linda (nome fictício) já es‐ tava internada havia oito meses. A tragédia dela começou quando um filho esquizofrêni‐ co a trancou no porão de sua casa e, desidra‐ tada e imobilizada, desenvolveu um quadro de trombose nas pernas que evoluiu para tromboembolismo pulmonar (gravíssimo na maioria dos casos). Depois de idas e vindas entre pronto socor‐ ro, UTI e enfermarias, ela acabou sendo admiti‐ da na enfermaria de cuidados paliativos, pois já tinha desenvolvido umquadro de encefalopatia irreversível e, neste momento, decidiu‐se por manter apenas cuidados que priorizassemcon‐ forto sem que fossem tomadas condutas inva‐ sivas ou fúteis que prolongassem, desnecessa‐ riamente, seu sofrimento. E, durante meses, ali ficou internada no limite da sobrevivência! O senhor, então, contou que foi o primeiro namorado deMartha Linda e que, dos 15 aos 19 anos, viveu os dias mais felizes de sua vida, vi‐ sitando‐a todos os dias religiosamente na janela de seu quarto semque fosse necessário umúni‐ co beijo nesse período todo. Lamentou ser de família pobre e ela não, o que fez com que os pais de Martha Linda forçassemum casamento com outro de mais posses. Nesse momento, o senhor puxou do bolso um charmoso lenço de seda e, delicadamente, desdobrou e tirou de dentro uma foto intacta de 1949: Martha Linda tinha 16 anos, estava com um vestido deslumbrante e um colar que cinti‐ lava na foto. Linda como poucas! Aos prantos, o senhor contou que nunca se casou por não con‐ seguir amar nenhuma outra e que Martha Lin‐ da, mesmo depois de casada, não poupava es‐ forços de lhe lançar olhares amorosos por onde se cruzavam. Justificou sua ausência por tanto tempo pelo desconhecimento da internação, e que só estava ali porque, hámuito, vinha pensando e sonhan‐ do comela e que, sempre quando pensavamui‐ to em alguém, este partia. Segundo ele, foi esse o sinal que o motivou a procurá‐la pelos hospi‐ tais de São Paulo. No dia seguinte, Martha Linda evoluiu a óbi‐ to! Quem presenciou, disse que ela partiu sere‐ namente e em conforto. E, até hoje, ninguém conseguiu responder se Martha Linda esperou essesmeses todos emagonia por uma despedi‐ da ou o se o senhor, simplesmente, pressentiu sua partida! A história de Martha Linda resume o que é cuidado paliativo, onde a medicina reconhece suas limitações e respeita seu princípio maior: curar às vezes, aliviar quase sempre, consolar sempre! ● Dr. AlessandroNunes CUIDADOS PALIATIVOS: A história de MarthaLinda ViverBem Doutor Alessandro Nunes, Médico professor da Unifap, especializado em Clínica Médica pela Unifesp, e Geriatria, pela USP. Revista DIÁRIO - Junho 2016 - 16
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